Desconfio que já não vou a tempo de fundar um clube
Até aos 23 anos tive quatro clubes, mas o que sempre quisemos, crianças nos anos 80, foi criar o emblema da nossa rua. Já não vai dar, imagino, mas talvez ainda possamos ser campeões no nosso bairro.
Em maio o Crystal Palace venceu o Manchester City no final da Taça de Inglaterra e os seus adeptos festejaram pela primeira vez um grande título. Nesse dia, escrevi no sítio onde escrevo temas para possíveis textos: o que motiva a existência de clubes que nunca ganharão coisa alguma?
Ou pelo menos demorarão muito, como o Crystal Palace nascido em 1905 (ver a história), a vencer algo de facto relevante.
O tema ficou por lá, em sossegdo, até que fechado num avião me lembrei e resolvi escrever o que se segue.
A maior parte dos clubes de futebol nunca ganharão um título. E no entanto terão atletas, treinadores, dirigentes e até adeptos. Se definirem os objetivos certos, quem sabe até poderão ser campeões. Não os campeões que vencem competições e festejam nas ruas, mas aqueles que fazem as coisas certas.
Pergunto-me: o que leva uma pessoa a ser de um clube? Sobretudo um clube que não ganha e cuja expectativa de ganhar é praticamente nula, como no caso do Crystal Palace e milhares de outros pelo mundo.
Penso no meu caso: até aos 23 anos, quando entrei na redação de A Bola, tive pelo menos quatro clubes.
Creio que é verdade, ao longo da vida não temos apenas um clube, se é que temos algum.
Dois dos meus-clubes-até-aos-23 disputavam a primeira divisão e o título de campeão nacional, por estranho que isso possa parecer. Comecei por um, passei para o outro.
O terceiro era o clube do local para onde fui morar, aos sete anos, e que por sorte tinha o campo em frente ao meu prédio.
O quarto foi o clube que representei como jogador e aprendiz de treinador, a 15 minutos do tal local onde morei durante 30 anos.
Nunca fui do clube da terra onde nasci, até porque havia dois. Não fui capaz de me decidir.
Agora, desde que não tenho responsabilidade no futebol ou no jornalismo, sou do clube da terra onde moro. Sócio mesmo. Mas também sinto que sou do clube que representei, embora ande longe. O outro, onde morei, entretanto foi extinto. Faliu.
Dos outros clubes, os que ainda lutam por títulos, já nunca mais serei.
Interessa-me muito a dinâmica social e emocional de pertencer a um clube.
Parte disso é mesmo a necessidade de fazer parte de um grupo. Pode ser na escola, na rua, no clube ou no partido.
Um outro bocado disso é reconhecer pessoas que pensam e sentem algo semelhante, o que provavelmente nos apazigua e faz sentir integrados.
Acontece também quando temos os mesmos ídolos, sobretudo se forem artistas e defenderem valores e ideias semelhantes.
No liceu acho que o meu clube era o Zeca Afonso. Por tudo.
Lembro-me de que um bocado antes dessa idade formava clubes em casa, para jogar subbuteo. Não era só a equipa, com o Toninho Cerezo da Roma e da seleção brasileira a capitão. Fundava também o clube.
Nos anos 80, a ideia de ser federado era muito popular entre nós, miúdos de 11 anos. Falávamos muito sobre a necessidade de juntar dinheiro, ir à associação de futebol e tratar disso.
O Alves era um pouco mais velho e parecia saber como as coisas se fariam. Um nome, o equipamento, um símbolo, papelada e nós.
Por alguma razão, nunca fundámos o clube. Talvez por não termos dinheiro e um campo, imagino.
Ficámos pelo jogo entre amigos na rua a subir até que o Verão acabou, cada um foi treinar à experiência a algum lado e por lá ficou. Pela primeira vez federados, com o cartão para mostrar na escola e aos árbitros antes dos jogos.
O clube é o mesmo equipamento, a disciplina, os treinos, fazer o que o treinador manda e esperar que nos coloque a titular ao fim de semana.
O clube é também a família a ver, pelo menos de vez em quando. Vai, chuta, marca, não faz mal para a semana ganhamos, traz o teu sumol e a sandes para o Carlos.
Pensava muito sobre isto quando assistia a jogos do Racing Power, um clube apenas feminino da Liga BPI. Com uma equipa, mas sem adeptos e sem campo, na imensidão do Estádio Nacional.
Para mim, faz pouco sentido que um clube nasça sem ser a partir de uma comunidade. Um bairro, uma vila, se for uma cidade melhor. Se houver rivalidade nessa região, ótimo.
O jogo que mais gostei de ganhar pelo Tenente Valdez foi ao Odivelas, os tais dois clubes da minha vida. Difícil explicar isto, mas foi tão bom. Ficámos só com dez, em casa deles, metemos a bola no Nuno e ele, rápido, rematou de pé esquerdo ao ângulo. Depois aguentámos. O campo do Odivelas já nem existe mas naquele dia de manhã tinha muita gente. Agora é um jardim, mas às vezes ainda sonho com este jogo. Foi ao ângulo, não há nada mais bonito do que a bola ir ao ângulo.
Se um clube nasce sem base social, como fazer? Creio que resta a família dos jogadores. Não chega fazer um plantel, vai ser preciso definir uma identidade e trazer pessoas que lhe deem corpo.
Perguntam-me se acredito mesmo e respondo que sinceramente não. O caso do RP e a sua escassa evolução como unidade de agregação social é um exemplo que parece confirmar a dificuldade.
Mas acredito, muito, que os clubes têm de ser o centro da sua comunidade. Nem fazem sentido de outra forma.
No tempo em que tudo é dispersão, que o feed de cada telemóvel é um mundo diferente, jogar algo coletivo torna-se ainda mais importante.
O desporto é aquele momento em que os praticantes não podem ter o telemóvel na mão e isso é logo maravilhoso. Mas não chega. Temos de ocupar também quem leva os jovens atletas ao treino.
Para isso necessitamos de ideias, de quem faça e de espaços adequados.
Sim, é muito para fazer, talvez muito para mudar.
Mas só assim os clubes desempenharão verdadeiramente a sua função.
Neste EURO 2025, a Iberdrola lancou uma campanha feliz sobre a seleção em que referia a força da energia feminina. Concordo, mas talvez a energia mais sábia e disponível seja a dos mais velhos e o walking football tem a capacidade de colocar no mesmo espaço todas as gerações: os netos, os pais e os avós.
Talvez já não vá a tempo de formar o clube da minha rua.
Mas adorava que pelo menos o clube do meu bairro fosse o melhor de todos a criar o ciclo virtuoso que junta atletas, treinadores, pais, avós, dirigentes e adeptos.
É um objetivo em que podemos ser campeões e depois, quem sabe, um dia imitar o Crystal Palace e festejar na final da Taça.