O homem que só tem um estádio (25 anos depois)
A última reportagem que escrevi em A Bola foi a que mais me agradou. Nem estava em Cabo Verde como jornalista, mas a história sentou-se na mesa ao lado e a campainha tocou.
Não sei se foi a melhor reportagem, nem sei se houve uma tão boa que mereça ser a melhor. Sei que foi a que mais gostei de escrever. Não por ser especialmente agradável ou por achar que iria ser muito lida. Essas métricas nunca me entusiasmaram. Sempre achei que um jornalista é uma pessoa que tem no seu interior uma campainha que toca quando se cruza com uma história. Em alguns períodos, trabalhei dias seguidos, não sei bem quantas horas, porque se não fosse assim não haveria história. E a história tinha de ser escrita. Ser jornalista é incrivelmente entusiasmante. Pelo menos era, uma vez que entreguei a carteira há uma década, embora não tenha depositado o jornalista.
Desta vez, em Cabo Verde, eu nem estava como jornalista.
Tinha sido convidado para dar formação a jornalistas, na Cidade da Praia, e estava prestes a viajar para o Sal quando, sentado no Cachito com um amigo cabo-verdiano, ele me perguntou se sabia quem estava ali. Não fazia ideia. O resto está contado no jornal.
As fotos também são minhas, embora naquele tempo fosse crime um jornalista tirar bonecos, isso era faltar ao respeito aos camaradas da reportagem fotográfica. Desta vez teve de ser, era só eu, a máquina e o momento. Disparava ou calava-me para sempre.
Sou tímido, foi difícil fazer a abordagem ao senhor da mesa ao lado, ouvir a história dura, pedir-lhe para irmos ao estádio e ir percebendo a importância que o momento estava a ter para ele. Luís Bastos foi um jogador espantoso, dizem, o melhor do seu país, chegou a treinar no Benfica de Eusébio, ele que preferia Coluna. Deram-lhe o nome do estádio da Várzea, uma decisão que andou para trás uns anos depois, até ser recuperada em 2020.
Nunca olhei para mim como um repórter cheio de instinto, um cronista fabuloso ou um tipo que sacava as melhores notícias. Como jornalista, acho que tive duas qualidades: trabalhava muito e mantinha-me atento à campainha.
A esta distância, gosto do título e reconheço-me no texto, o que me deixa especialmente feliz. Este foi o último que publiquei em «A Bola». Lembro-me que cheguei a pensar que, tendo anunciado a saída, acabasse por não ser publicado. Felizmente não foi assim que sucedeu. Nunca soube se o melhor jogador de Cabo Verde o chegou a ler e o que achou. Se leu, espero que tenha gostado.
(escrevo este texto porque passaram agora 25 anos e sobretudo porque tenho esperança de ser lido por jovens candidatos a qualquer coisa, talvez a partilha os ajude. Nesta história, a moral é simples: se queres ser jornalista, certifica-te de que tens uma campainha, de preferência uma que funcione sem eletricidade porque às vezes há apagões que ameaçam calar-nos)
(o texto tal como ele foi publicado em 2000)
PRAIA — Luís Bastos teve tudo e mais um lugar no Benfica de Eusébio. O pai preferiu que ficasse em Cabo Verde. Idolo, o melhor jogador do país na voz da maioria, passou pela prisão e só não perdeu o nome no estádio da Praia e o medo de o perder.
Um homem bebe cerveja numa mesa do Cachito, na Praia, o bar onde antes de 1975 se reuniam os que lutavam pela independência de Cabo Verde. Como na canção, é uma imagem banal. A imagem sim, o homem não.
Aspecto desalinhado, assiste em silêncio à conversa dos outros. Parece só no Mundo.
Há 30 anos era uma das figuras de Cabo Verde. Entrava em todas as conversas e nem precisava de estar presente. Quando alguém lançava a discussão — «Quem é o melhor jogador de Cabo Verde?» — o nome dele era sempre o primeiro.
Naquele tempo, como hoje, o futebol do país era um reflexo baço do que se passava na Europa, sobretudo em Portugal. Quando este homem, que agora se levanta, jogava, todos sustinham a respiração. Genial, imprevisível, perdido no campo, cabeça nas nuvens, bola evitando buracos e pedras dos terríveis pelados da terra.
Nesse tempo Cesária Évora ainda não tinha mundializado a palavra «sôdade», mas os cabo-verdianos sabiam bem o que significava. A terra longe era o lugar de todas as promessas. O homem que convido para se sentar na minha mesa também partiu. Estudou quatro anos na Escola Agrícola de Santarém mas não terminou o curso.
Naquele tempo o Benfica era tudo. Para quem jogava e para quem via jogar. Mais velho um ano que Eusébio, Luís Bastos pertencia a uma família com posses. Não precisava do futebol mas o clube português mandou chamá-lo. Ofereço-lhe uma cerveja em troca de um olhar para trás. Entramos na vida de outra pessoa.
Andou pela Luz quase um ano. Treinava-se com os maiores. Eusébio era a figura, mas sempre preferiu Coluna. Do capitão guarda as recordações essenciais, para a história ficou o desfecho: proposta baixa do Benfica, pedido do pai para que regressasse a Cabo Verde. Se era para ganhar aquilo e não estudar, a família preferia tê-lo por perto. O futebol profissional, com todas aquelas regras, era algo que não o entusiasmava.
No relvado em dia de liberdade
Luís Bastos fala devagar, como quem escuta o som de cada palavra. Mas a história corre. Perceberemos daí a pouco porquê. Agora falamos de Portugal, do futebol cabo-verdiano, de A BOLA, outra vez de Portugal, outra vez de Cabo Verde.
O tempo passa. De volta a casa, Luís Bastos jogou enquanto quis, e quis até aos 40 anos. Era tão superior aos outros que quase não precisava de correr. Bastava-lhe pensar.
Foi melhor que todos, ninguém estranhou quando um dia anunciaram que o estádio da Várzea, na cidade da Praia, passaria a ter o seu nome. Ninguém? Só Luís Bastos ainda estranha, talvez por não ter tido tempo de sentir a novidade.
Aqui chegados, Luís Bastos encolhe-se um pouco, desvia o olhar e pede-me que não fale nisso no jornal. Mais à frente mudará de ideias. Nisso é o período negro da sua vida, um episódio infeliz que terminou mal. Um erro que lhe custou quatro anos de liberdade.
Mudamos de tema. Desafio-o a ir ver a relva que cresce no seu estádio. Nasce-lhe um brilho nos olhos. Aceita, mas só por ser para A BOLA. Escrito parece auto-elogio fácil. Visto foi coisa distinta.
Deixamos o Plateau, rumo à Várzea. Há muito que não vinha ao estádio, sussurra. Entramos com cuidado, por entre tijolos, pedras e madeiras, sinais das obras. Devagar continuamos.
Não estivéssemos em Cabo Verde e seria apenas mais um relvado. Pergunto-lhe se posso tirar três ou quatro fotografias. Sim, mas pede-me que não o foque de frente. Daí a pouco vai abraçar-me e sorrir emocionado pela feliz coincidência de estar ali, naquele dia.
Coincidência? Ainda não percebo. Ele fala cada vez mais depressa, como se estivesse sozinho. Trata-me por tu. «Achas que eles vão tirar o meu nome do estádio?».
Muda de ideias. Agora já quer que eu fale naquilo. Pede-me que o faça. «Escreve, diz a toda a gente que estou livre.» Tira do bolso um papel dobrado em quatro. Leio-o de um fôlego. É uma carta com meia dúzia de linhas. Tem escrito Luís Bastos e a expressão liberdade condicional. Tem também uma data: a do dia em que A BOLA o levou a pisar a relva do estádio com o seu nome. Agora o homem que perdeu tudo menos o nome no estádio entra num táxi de volta a casa e repete o pedido: «Podes dizer a toda a gente que estou livre?». Posso. Claro que posso.